autobiografia - valter hugo mãe

nasci no dia vinte e cinco de setembro de mil novecentos e setenta e um, numa cidade angolana outrora chamada henrique de carvalho , hoje conhecida por saurimo. o meu pai trabalhava no banco de angola, antes disso havia sido militar, e passava o tempo arrastando a família de cidade para cidade. a minha irmã marisol nasceu em luanda, o meu irmão marco em nova lisboa e a minha irmã flor nasceu nas férias em guimarães. quando éramos pequenos o meu irmão tinha ciúmes de mim mas protegia-me contra os estranhos, a minha irmã mais velha era uma segunda mãe e a minha irmã mais nova era divertida. às vezes penso que o vinte e cinco de abril de setenta e quatro foi o dia em que a minha cabeça nasceu. a ideia é mais simples do que possa parecer, dessa data guardo a minha recordação mais antiga. em setenta e quatro eu faria o meu terceiro aniversário e posso lembrar-me daquele dia por duas razões distintas, nenhuma menos relevante para toda a minha vida; primeira: eu estava com os meus pais e os meus avós maternos em lisboa, subitamente apanhados entre ruídos de tiros e confusões em redor do banco de portugal; segunda: viéramos de angola havia pouco tempo e lá não vira nenhuma criança loira, de pele clara, como o menino que brincou comigo no tempo de espera pelo meu pai. lembro-me de estar com a minha mãe e sair do carro com ela. havia um espaço verde e um pequeno recreio infantil um pouco adiante. estávamos em lisboa porque o meu pai deixava o banco em angola para vir para a união de bancos portugueses, coisa a ser tratada na capital. fizéramos a viagem na nacional antiga, durante seis horas, talvez mais, e não sabíamos de nada porque o rádio esteve sempre desligado. lembro-me de haver uma luz clara no recreio. não tinha frio. um menino disse-me, eu cá vou para o escorrega, e eu nunca mais esqueci a sua expressão oral. dizia eu cá para tudo. parecia-me estranho. e menos igual vira um menino tão claro que me confunde ainda hoje a memória: não sei se em verdade o dia estava luminoso, se era o cabelo dele que o acendia em nosso redor. em angola, dissera-me anos mais tarde a minha professora, os meninos são pretos como a noite. eu, nessa altura, não me lembrava de nada. nem dos meninos da noite nem do menino do dia vinte e cinco de abril de setenta e quatro. acho que só aos oito ou nove anos me lembrei do sucedido. comprovei a história com os meus pais. apareceu-me como uma encarnação passada e mediu a minha vida com outra extensão. na minha meninice livre, permitida numa vila pequena como era paços de ferreira, abria-se um fosso no tempo e também lembrei como corremos, eu e a minha mãe, aos gritos do meu pai aflito sob os ruídos dos tiros. corríamos de cabeça baixa que a minha mãe era assim que fazia, e eu sei que ainda corri um pouco e depois fui tomado no colo. não nos deixámos parados dentro do carro. o meu pai imediato nos levou dali para fora. a capital estava a ser revolucionada, e ainda que as pessoas confusas achassem que era para o bem , os tiros ouviam-se e pareciam tão rentes por vezes. eu expliquei à minha professora que não me lembrava dos meninos de áfrica, mas que me lembrara de estranhar os meninos mais claros de portugal. na altura ainda lhe disse algo sobre uma menina da classe. tinha os cabelos muito loiros e alguém lhe chamava de francesa. para a frança emigravam as pessoas todas daquela zona, por isso, o estrangeiro para nós era paris. no liceu fiz uma qualquer redacção sobre o vinte e cinco de abril, não sei bem que coisa disse – a nota não foi muito boa – sei o que quis dizer. no dia em que a minha cabeça nasceu ofereceram-me a liberdade e conheci a diferença. conheci e aceitei a diferença. que no mundo haveria de ver gente clara ou escura, pobre ou rica, mão esquerda ou mão direita fechada sobre o peito, e haveria de me reportar constantemente àquele momento que guardei esquecido para só entender mais tarde. haveria de entender, vez por todas, que não desperdiçaria nunca coisa tão cara que um só dia me trouxe. assim, vivi em paços de ferreira, onde fiz a escola primária, e lembro da cidade – uma vila muito pequena, então – como um lugar pacífico onde se brincava na rua sem medos, entre riachos e mato, terras que aluíam e caminhos de paralelo a prejudicar as rodas das nossas bicicletas. a escola onde andei foi deitada abaixo em favor de um prédio horrível. a casa onde vivi – a casa da dona alice, devota da santa sílvia cardoso – esteve em ruínas muito tempo a albergar toxicodependentes. agora, disse-me o senhor luís magalhães, meu amigo de freamunde, foi deitada abaixo. fui verificar e tenho uma só fotografia onde se vêm as suas paredes rosa. à frente dela estou eu, com 7 anos talvez, uns calções brancos, cara de miúdo bem comportado, muitos sonhos a nascer. no nosso quintal imenso apareceram prédios. os meus amigos de infância, com quem perdi o contacto, são estofadores de móveis, diabéticos, casados, gordos, donos de fábricas e distantes. era uma casa imensa para mim, dividida ao meio por um longo corredor, eu digo que era uma casa com risca ao meio no interior, e eu podia ir da sala ao meu quarto de bicicleta. era cor de rosa velho e tinha heras agarradas aos muros, muitas, assim a tapar as vistas e a criar uma privacidade que nos possibilitava, aos miúdos, acampar no quintal pelo verão, cheios de medo que viesse um bicho qualquer que nos fizesse viver uma aventura maravilhosa. vivíamos assim, como se as coisas boas também nos dessem medo, de tanta ansiedade por elas. viemos para vila do conde em oitenta. senti tanta falta dos meus lugares que me levei a sério. escrevi poesia. antes disso havia sido meio seduzido para a escola porque me ensinariam a escrever por meu punho provérbios e outras máximas que eu pudesse ler repetidamente. fascinavam-me as frases perfeitas, absolutas, como saberes dogmáticos. ganhei na escola primária um chocolate por recolher o maior número de provérbios. não o comi de qualquer assentada, esperei como a lidar solenemente com o orgulho, ou como se esperasse o momento exacto em que o chocolate florisse para comê-lo mais caviar, nuvens, livros inteiros, abraços de minha mãe, noites de grandes sonhos, e outra vontade maior de voltar à escola e estudar. em vila do conde conheci a nany, mais velha do que eu, a incentivar-me a levar a poesia mais ao caminho. conseguiu. comecei a ler desalmadamente o pessoa e a achar que também se podiam encontrar poetas vivos. mesmo assim fiz o curso de direito, no porto, e estagiei como advogado com o dr. almeida sampaio, espirituoso e excelente para meu patrono. dizia-me que haveria de traduzir o ‘ulisses' do joyce. eu já editara nessa altura o meu primeiro livro. ele achava que eu poderia ainda salvar-me do mundo áspero do direito. disse-mo muito convicto e eu fiquei orgulhoso. esqueci a advocacia e fugi para a organização de um evento poético, em vila do conde, que me levou ao contacto reiterado com o centro de estudos regianos. a manuela laranjeira , do centro, ajudou-me e entrei a trabalho na associação. fiquei mais de dois anos, maravilhado com conhecer melhor a obra de régio e com o trabalhar na cultura, como sempre quis. ganhei um prémio de poesia da associação dos jornalistas e homens de letras do porto com um livro chamado «egon schielle auto-retrato de dupla encarnação». por causa disso conheci o francisco duarte mangas, que admiro. escrevi este livro pelo pintor e por ter ouvido, numa tarde qualquer na biblioteca rocha peixoto, da póvoa de varzim, o disco dos rachel's chamado «music for egon schielle». logo ali, os auscultadores nos ouvidos, escrevi o poema que abre todo o texto e achei, por um tempo, que o pintor se andava a meter na minha vida, tão obcecado fiquei com descobrir-lhe particularidades. o jorge reis-sá , que eu tinha conhecido meio de relance, aproximou-se um dia desses, no ano de noventa e nove, e convidou-me a apresentar um livro para o projecto que criara, ainda muito amador, chamado quasi edições. fiquei vaidoso e aceitei. depois convidou-me, poucos encontros mais tarde, para ser sócio dele na aventura e constituir uma empresa, uma editora a sério. aceitei, achei coisa doida de mais, era de aceitar. entreguei-lhe um livro chamado «três minutos antes de a maré encher», quando saiu, apresentado pelo escritor mário cláudio, já eu era, de palavra, sócio da quasi. o meu pai morreu no entretanto, a nove de janeiro. tinha cinquenta e nove anos e um mieloma, um cancro no sangue que destrói o corpo todo, como se bichos corressem por dentro dele, como corria o sangue a fazer-lhe comichão, que era, na verdade, a enfraquecer-lhe as paredes dos órgãos a desfazerem-se. tenho muitas saudades dele. lidar com a morte de alguém que nos pertence é impossível, por isso é tão difícil. deixei o centro de estudos e dediquei-me só à editora em janeiro de dois mil e dois. passámos de tudo um pouco mas vimos o projecto crescer. em dezembro de dois mil e quatro saí. guardo com carinho a recordação da escolha e edição de cada um das centenas de livros que produzimos mas, se até o mundo gira, como não estaremos nós em movimento. parti para outra. antes ainda, tinha-me inscrito num mestrado na área de letras. entrei. estudei saúl dias. ultrapassei o prazo para a entrega da tese. fiquei pós-graduado em literatura portuguesa moderna e contemporânea. um dia destes reinscrevo-me para defender a tese e completar o mestrado. conheci o antony, do projecto antony and the johnsons. acho-o genial. somos amigos. há coisas na voz dele que viajam de longe, como importações directas entre céu e terra. fiz dele uma personagem do meu primeiro romance, «o nosso reino», editado pelas temas e debates. conheci o adolfo luxúria canibal. somos amigos. já lhe disse que quando era miúdo achava que cresceria para ser igual a ele. se não sou sequer parecido talvez seja porque vou crescer um pouco mais. o lee ranaldo também chegou a ter um livro programado para a quasi. estive com ele no porto. eu e o alexandre a lembrar as coisas mais incríveis de um certo tempo na nossa vida. em dois mil e três editei, nos cadernos do campo alegre a convite do joão gesta, um livro chamado «o resto da minha alegria seguido de a remoção das almas». dediquei o primeiro poema à adriana calcanhotto. ela fez a capa do livro, onde pode ver-se a sua colecção de relógios, forma de manifestar a passagem do tempo, do seu tempo, através da exposição de cada relógio que usou em todos os anos da sua vida. quis que esse livro fosse uma declaração de amor. coisa de que precisei muito ao ouvir «a fábrica do poema». odeio repetir-me, mas vou ter de, um dia, escrever algo que me apazigue e case definitivamente com a amália, com a patty waters, com o caetano veloso, com a lisa gerrard, com a diamanda galás, com a billie holiday, o devendra banhart, ó meu deus, com o bosch e o william blake, lautréamont e wilde, shakespeare, camões, josefa de óbidos, da vinci, sei lá quanta gente mais. se não fosse a escrita só a música me ganharia. ou a pintura. ou o cinema. o teatro. ou um projecto incrível em áfrica ou outro lugar qualquer onde pudesse salvar uma vida e entender porque sempre acreditei que entre tudo os outros são sempre o mais importante do mundo. como se deus existisse e quisesse muito que eu acreditasse nele...

 

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